Chame o delegado

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Angelo Rubim

Algumas curiosidades sobre a história da polícia de Taubaté

Até o começo do século 20 o cargo de delegado de polícia era estritamente político. Apesar de existir uma supervisão da força policial em âmbito provincial/estadual, o delegado não precisava ter nenhum tipo de formação específica, bastava ser uma peça importante no jogo político local. Além dele, existia ainda o subdelegado, e mais três suplentes.

Durante o século 19, os delegados eram principalmente fazendeiros ou pessoas ligadas aos fazendeiros, que eram os donos do poder local. Com o crescimento das diferenças políticas do final do século e o acirramento das disputas, a origem dos delegados começou a se diversificar. Além dos fazendeiros, ocuparam o cargo de delegado em Taubaté alguns farmacêuticos, médicos, engenheiros, alguns bacharéis em direito e – não se assuste – até um padre.

Essa aparente desordem perdurou até o final dos anos 1900, quando começou a ser colocada em prática uma lei estadual que criou, em 1905, a carreira de delegado de polícia que, inclusive, passou a ser remunerado com valores de acordo com o grau de importância da cidade, em que Taubaté foi posicionada como 3º Classe, oferecendo remuneração mensal de 250 mil réis aos delegados. Além disso, regulamentava a carga horária de trabalho, que antes era determinada pelo próprio delegado, mas que deveria ser exercida, por lei municipal, ao menos um dia por semana. Foi essa uma das primeiras ações de estadualização da força policial durante o regime republicano.

Até esse período eram poucas as razões que motivavam o afastamento dos delegados, eram basicamente quatro: morte, motivação política, renúncia (a tal exoneração a pedido) e, em casos extremos, demissão. Sendo que o último era o caso mais raro.

O poder do delegado impunha a ele um sem número de atribuições, entre elas e verificação do cumprimento de medidas de proteção sanitária, de funcionamento do mercado e regulação do comércio, além, obviamente, da manutenção da ordem social.

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Cadeia Velha, em 1856, na esquina das atuais Rua Dr. Pedro Costa e Rua São José. Fotografia de Robin&Favreau. Acervo Mistau

Temos exemplos nos jornais taubateanos. Quando a cadeia e a delegacia ainda ficavam no largo da Cadeia, no lugar do atual prédio do Grupo Escolar Lopes Chaves, O Jornal do Povo de 10 de janeiro de 1890 noticia que “o subdelegado de polícia de Taubaté, Sr. José Pedro Malhado Rosa, em diligência no mercado, verifica que o toucinho está sendo molhado e salgado demais e adverte os infratores. Constata ainda a existência de muitos pesos de 1kg com 850g apenas e faz a apreensão dos mesmos, sendo muito aplaudido.” Nessa notícia, temos a evidência da ação do poder policial em dois aspectos: controle da qualidade de mercadorias, no caso o toucinho, e no controle de preços, com a regulagem de pesos e medidas. No caso da qualidade do alimento, o delegado era amparado por lei municipal de 1888, que regulava o comércio de toucinho na cidade, determinando a quantidade de sal e gordura, além da espessura do corte da carne que era vendida, sob pena de multa e apreensão. Sobre os pesos e medidas, havia uma série de regras de controle, desde leis federais até municipais.

Em 5 de janeiro de 1895 o jornal O Imparcial divulgava o alerta de que “o capitão Euzébio Afonso Vieira, delegado de Polícia de Taubaté, de ordem do Chefe de Polícia do Estado e a requerimento do Secretário do Interior proíbe os moradores das margens do rio Paraíba de se abastecerem no mesmo rio para prevenir futuros perigos do surto de cólera mórbus que ainda não se extinguiu de todo.” Um dos inúmeros casos de intervenção policial no controle sanitário.

São dois exemplos de até onde se estendia o poder do delegado de polícia. Além disso, a história policial naquela Taubaté do final do século 19 e início do 20 é recheada de curiosidades.

O Imparcial de 14 de janeiro de 1895 informa que o delegado, o Capitão Eusébio Afonso Vieira, enviou ofício à Câmara pedindo o fechamento do Restaurante da Luzia por perturbação do sossego público, e ia além, o pedido sugeria que a proprietária do estabelecimento fosse obrigada a, nas palavras do delegado, “procurar meio de vida honesto”. O restaurante era uma famosa casa de meretrício na cidade.

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Cadeia Nova, no Largo Comendador Costa Guimarães, atual praça Santa Terezinha, inaugurado em 1901 e demolido em 1963. Acervo Maria Morgado de Abreu

Devido os constantes constrangimentos acontecidos durante o carnaval, o delegado de polícia José Félix Paulino Bernasconi, proibiu, no carnaval de 1901, que pessoas mascaradas saíssem às ruas sem autorização policial. Nessa época, o delegado já atendia no Largo Comendador Costa Guimarães, atual Praça Santa Teresinha, onde foi construída a carceragem que substituiu a Cadeia Velha. Quatro anos depois, em 1905, o tenente Octaviano de Moura Andrade, delegado em exercício faz valer o Código de Posturas Municipais de Taubaté, que proibia “a venda de pós, graxas, carrapichos, espanadores, bisnagas, relógios, revólveres, seringas, limões de cheiro, etc. destinados ao jogo de entrudo, que serão apreendidos e os infratores multados” e completava “que está próximo o carnaval de que se vão eliminando velhos costumes”. As duas notícias retiradas do Jornal de Taubaté.

José Pedro Malhado Rosa. Foto do Almanak Illustrado 1904.
José Pedro Malhado Rosa. Foto do Almanak Illustrado 1904.

O fim da escravidão (que em Taubaté aconteceu em 4 de março de 1888) e as sucessivas crises econômicas que se impunham sobre Taubaté ampliaram os problemas sociais. Um deles foi o aumento de desempregados nas ruas da cidade. O Liberal Taubateense, de 15 de março de 1888 estampava em suas páginas a seguinte notícia: “O delegado de polícia de Taubaté, no intuito de reprimir a ociosidade, obriga os libertos que por aqui vagam a comparecerem à sua presença e tomar ocupação. Hoje foram empregadas cerca de 40 mulheres. Algumas detidas já eram cozinheiras e os seus patrões ficaram sem almoço e janta, pelo que reclamaram.” Não localizei informações de quem era o delegado à época, mas, em 1891, José Pedro Malhado Rosa, então delegado, encontrou uma solução no mínimo curiosa para o problema dos desocupados na cidade.

Estamos informados por pessoa muitíssimo competente, que o ativo delegado de polícia, cidadão Malhado Rosa, no sentido de reprimir a vagabundagem de ambos os sexos mandou fazer algumas chapas com a seguinte inscrição:

ALUGA-SE ESTA VAGABUNDA.

Esta chapa será presa nas costas do vagabundo ou da vagabunda, que acompanhada por praça percorrerá a cidade em busca de alugador.

Muito bem, não podia o sr. Subdelegado ter melhor lembrança.

No mesmo ano, a polícia se dirigiu ao local da fazenda de propriedade do Major Manuel Dias Cardoso, na qual haveria um quilombo  de feiticeiros, onde encontraram diversos objetos de uso desconhecido. O “Chefe da quadrilha de feiticeiros, temendo a ação da justiça, suicidou-se, tomando para isso forte dose de tóxico”, informou o jornal Pátria Paulista de 10 de abril. Anos mais tarde, o então delegado, Adelino de Araújo, promove diligência e prende um grande número de pessoas acusadas de feitiçaria, nos altos de São José, dos Conventos e subúrbios, conforme informa o jornal A Verdade, de 24 de fevereiro de 1905. A prática da feitiçaria era considerada crime e mesmo com a república assim continuou.

Outras tantas histórias envolvendo a polícia nesse curto período chamaram a atenção.

Em 1895, Eusébio Afonso Vieira, irmão do presidente da Intendência Municipal (o órgão que substituiu a Câmara quando a república foi instaurada), teria sido demitido do cargo de delegado por abuso de poder, segundo informações do jornal “O Comercio de São Paulo”, com sede na capital do estado. Foi acusado de sucessivos casos de abuso, a começar pela prisão e espancamento do italiano Rafael Riggi, acusado de fabricar notas falsas em sua fábrica de rótulos de garrafas de bebidas. O acusado foi inocentado pela justiça e o delegado violentamente criticado por alguns jornais que faziam oposição ao governo. Mais tarde, foi responsabilizado pela tentativa de assassinato e pelo decepamento de parte da orelha do comerciante português Sebastião José de Carvalho. E dois casos de empastelamento contra o Jornal do Povo, um deles com a destruição das oficinas tipográficas e a tentativa de assassinato de um dos funcionários do jornal, violentamente ferido com golpes de faca, e na outra com um incêndio que impediu a circulação do jornal por algumas semanas. O jornal taubateano “O Popular” saiu em defesa do delegado, alegando que o seu afastamento se deu em virtude da sua candidatura ao cargo de vereador. Nem os opositores alardearam sobre a demissão do delegado.

Fernando de Mattos. Acervo ACIT
Fernando de Mattos várias vezes delegado de Taubaté. Acervo ACIT

Em 1905, em um evento quase dionístico, o então delegado, o engenheiro Fernando de Mattos, que atendia na delegacia do largo Costa Guimarães às quartas feiras, tomou uma decisão pra lá de curiosa. Diz o Jornal de Taubaté de 31 de julho:

Aniversaria o Dr. Fernando de Mattos, delegado de polícia, e membro do diretório do Partido Republicano local. Ao meio-dia quando se dirigia para seu gabinete de trabalho foi surpreendido por manifestação de amigos e auxiliares. A cadeia pública desde o portão até sua sala de trabalhos está ornamentada de folhagens e flores. A mesa da delegacia atapetada de flores. O Dr. Fernando de Mattos sobe as escadas entre duas alas de meninas que lhe jogam pétalas. Em nome de seus auxiliares é saudado pelo escrivão da delegacia Adelmo Pelegrini e recebe um buquê de flores. […]Em comemoração do dia foram postos em liberdade todos os presos, sob custódia, existentes na cadeia. (Grifo meu).

O final da carreira de Fernando de Mattos como delegado se deu depois de uma longa briga com o então advogado José Bento Monteiro Lobato. Em uma série de artigos intitulados “Delegado Fora da Lei”, o engenheiro fora acusado de impedir a visita de advogados aos detentos na cadeia. Mas isso é história para outra oportunidade.

São pequenas amostras de um curto período de casos curiosos da história da polícia taubateana. Além desses, o curioso que quiser consultar casos mais complexos e diversos, a melhor fonte, sem a menor dúvida, é a lista de processos crime disponíveis no Arquivo Felix Guisard Filho, no museu histórico. E é por isso que escrevi esse texto, alguém precisa estudar mais sobre a história da segurança na cidade.

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Angelo Rubim é professor de história e editor do Almanaque Urupês.
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