PAULO HONÓRIO OU QUEM CONTA UM CONTO…

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Paulo Honório, fazendeiro de uma pequena cidade alagoana, decidiu traçar sua biografia. No início dividiu o trabalho com alguns amigos, cada qual ocupado com um aspecto: as citações latinas para o padre, a ortografia e sintaxe para outro cidadão, etc. Maior trabalho teria Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do jornaleco Cruzeiro. A ele competia transcrever as memórias do carrancudo Paulo Honório, que nos conta:

A princípio tudo correu bem, não houve entre nós nenhuma divergência. A conversa era longa, mas cada um prestava atenção às próprias palavras, sem ligar importância ao que o outro dizia. Eu por mim, entusiasmado com o assunto, esquecia constantemente a natureza do Gondim e chegava a considerá-lo uma espécie de folha de papel destinada a receber as ideias confusas que me fervilhavam a cabeça.

O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei:

-Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!”

Hoton Bastos encena Paulo Honório no filme S. Bernardo, de 1972

Para surpresa de Honório tudo que tinha falado havia sido traduzido em uma linguagem rebuscada, quase parnasiana. Segundo o jornalista uma coisa era a fala e outra a escrita. Cansado de discutir com o amigo, o fazendeiro abandona sua ideia. Mas basta ouvir um novo pio de coruja – sinal de agouro – para que volte ao projeto antigo, sendo que dessa vez quem escreverá o livro será ele. Só assim para sua versão ser respeitada, transcrita tal qual ele desejava.

A preocupação de Paulo Honório, protagonista do livro São Bernardo de Graciliano Ramos, é perfeitamente compreensível, principalmente para nós, historiadores. Uma das características do conhecimento histórico, segundo Carlo Ginzburg, é de que ele é indireto, indiciário e conjetural. Indireto porque o pesquisador não é apresentado ao seu objeto de estudo senão através de dados deixados por outros. Indiciário justamente porque se baseia nesses indícios, presentes nas mais diversas fontes. Conjetural por se basear em hipóteses, como toda ciência. Hipóteses, no entanto, que não podem ser comprovadas com simples experimentação como nas demais ciências. Mas, nos foquemos no momento no aspecto indireto.

O filósofo alemão Walter Benjamin comparava o historiador com o anjo por esse assistir a tudo de camarote. Ele acompanha as tragédias e alegrias da Humanidade, mas de um ponto de vista um tanto afastado. É privilegiado por saber o final do espetáculo, uma vez que seu tema estará sempre distante de si. No entanto, o historiador não está nas nuvens, uma vez que o interesse por seu tema parte sempre de indagações do presente e da sociedade em que vive.

Por isso chegar a verdade é tão difícil. Há quem diga que seja impossível. Outros mais otimistas, como o antropólogo e psicanalista Michel de Certeau, pensam que algum pedaço do imenso painel do passado conseguiremos alcançar. O painel inteiro é impossível, justamente porque o que temos ás nossas mãos são pontos de vistas. Há o ponto de vista do escritor, do político, do trabalhador, do indígena, etc. Não bastasse a visão de mundo dos outros, temos que interagir em nossos estudos com a nossa própria visão. No meio de tanta subjetividade, talvez repouse um pedaço do que realmente aconteceu (sendo otimista aqui).

A preocupação de se fazer entendido é algo que Paulo Honório e muitos personagens reais possuem. Quando se trata de História Vista de Baixo ou História Cultural isso fica muito claro. Walter Benjamin entendia a história, até então positivista e descritiva, como uma narrativa onde a barbárie dos “vencedores” era colocada debaixo do tapete. Ao anjo (historiador) caberia tirar esse segredo do seu recanto (o esquecimento). É preciso, em outras palavras, dar voz aos que não falam nas narrativas convencionais – pressuposto principal da História Vista de Baixo.

No entanto, o conhecimento histórico, como vimos, é indireto. A voz que apresentamos será a dos “vencidos” ou da “minha representação dos vencidos”? O ideal seria que eles próprios declarassem seu ponto de vista, mas graças á própria natureza um tanto precária das classes menos favorecidas e o interesse menor nesses personagens (interesse relativamente recente) é bem improvável de encontrarmos algo do tipo. Improvável, mas não impossível.

Carlo Ginzburg, historiador italiano. Foto Rodrigo Capote/Folhapress

Ora, Ginzburg encontrou nos relatórios inquisitoriais um pouco do pensamento de um obscuro moleiro da vila de Montereale, na Itália. Graças á sua análise acurada (tentando captar nos documentos dos inquisidores, a imaginação do moleiro) Domenico Scandella deixou de ser um anônimo para ser esse personagem intrigante, símbolo das articulações culturais ambíguas do seu tempo.

A Micro-História, a qual Ginzburg e Giovanni Levi ajudaram a fundar através de seus estudos, se utiliza muito dessa perspectiva pouco convencional da História. Ela tem outro mérito também: procurar ser entendida por um público maior, tentando chegar nos “vencidos” de hoje. Sua linguagem não é demasiadamente técnica ou prolixa, mas eclética e acessível.  Assim, ouvir e ser ouvido pelos grupos que estão no acostamento da narrativa histórica convencional é um objetivo perseguido por esse campo em especial, mas nada impede que o tomemos como uma meta de todo historiador, independente de sua abordagem. Quem não conseguir dialogar com a subjetividade e a temporalidade da História, não esquecendo da linguagem, corre o risco de “acanalhar o troço”.

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

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