Alimentação no Vale do Paraíba

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No texto “Sintaxe Caipira do Vale do Paraíba”, Gentil de Camargo relembra a alimentação dos antigos moradores da região

Este trabalho é destacado do apêndice à “Sintaxe Caipira do Vale do Paraíba”, que venho escrevendo há já alguns anos, e a que ainda não consegui dar a demão definitiva. Como tudo a que se faz à margem da luta cotidiana, tem que esperar pelos vagares, nunca sobejos.

Pela primeira vez foi dado à estampa excelente Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (1937), publicação sobremaneira valiosa para a cultura bandeirante. Ora, entregou-o à “Paulistânia”, que se tornou documentário indispensável ao conhecimento da nossa terra de Piratininga.

Não parece estranho numa obra que se propõe estudar fatos de linguagem, figuragem, embora em “apêndice”, as notas que se seguem. Já observou Dazat: “Le Langage populaire est intimement lié à I’histoire dês moeus ET dês cotumes, à I’histoire locale, à La psycologie sociale, au folklore. (Albert Dauzat. Les Patois, págs. 8 e 9, Ed. Delagrave, Paris, 1927).

A Alimentação

Para observamos a alimentação dos habitantes do Vale do Paraíba, dividimo-los em dois grupos: 1. Caipira da roça, “o camarada”; 2. Remediado e rico da fazenda, do sítio ou da cidade. (Note-se o provérbio: “Camarada de rico, remediado: camarada de pobre, desgraçado”).

O caipira da roça é pobre, imprevidente, fatalista, inteligente, irônico e desdenhoso. Um ou outro, que é econômico, “miserável”, “ridico” (avarento), passa para outra categoria social. Sobe ao grupo 2.

Grupo 1

A alimentação do grupo 1, de acordo com o horário cotidiano:

a) Levanta-se às 6 ou 5 horas; às vezes, até às 4. Toma café ralo, abundante, café de rapadura passado no “coadô”. Serve de “mistura” um dos alimentos seguintes: farinha de milho; batata-doce assada na cinza; mandioca socada igualmente; farinha-gorda de milho ou fubá, preparada assim; molha-se a farinha ou o fubá em água de sal e cozinha-se na gordura, até ficar granulada pelos mexidos continuados.

b) 9 ou 10 horas, almoço, o “de-cumê”, o grude; a bóia, ultimamente e por influência do sorteio militar; o “feijão”, a “cumida”, constante de: feijão (o prato principal) cozido com água, sal, gordura e “tempero” (alho e cebola); às vezes, cozido com torresmos, couve rasgada, couro de porco; ou, se depois misturado com farinha de milho, diz-se “virado”; arroz-quebrado, ou quirera de milho, cozido pelo mesmo processo; couve cozida, caruru ou taioba; farinha de mandioca ou farinha de milho; torresmo. O último prato é “pra caldeá”. É o caldo de feijão restante no caldeirão, engressado com farinha de mandioca.

Alimentação eventual: leite, aves, ovos, peixe e carne (porco e vaca). A carne de vaca era comida somente pelo entrudo e sob o processo de “afogado”. Passou, depois, a ser usada também na Páscoa e no São João, sempre como “afogado”. Durante estas refeições, bebe-se pinga “pra cortar a gordura”. O peixe, para os ribeirinhos, é alimentação cotidiana, frito ou cozido; ou em “moquecas” enroladas em folhas de caeté ou de bananeira, se guarus, piquiras, sempre com farinha de mandioca. Carne-seca, bacalhau, jacaré. Caças: tatu, lagarto, veado, paca, cotia (rara e apreciada) raposa, ouriço, porco-do-mato, capivara, macaco e onça muito recomendável porque “não deixa pegá “maldefazo” nem bexiga e até cura “maldelazento”.

O içá torrado, socado com farinha de mandioca ou não, é apreciadíssimo. São poucos os animais ou aves que “não se come”, por exmplo: o anu, porque come carrapato; o gavião, porque come cobra; a andorinha, que é veneno; a coruja, agourenta; o urubu, imundo; o joão-de-barro — porque, guardando os dias santos, (pois, é crença que não trabalha nos dias santificados), é abençoado”.

Frutas: Alimentação também eventual de que mostram não sentir necessidade, embora lhes gozem o sabor com delícia. Comem o maracujá, fruta de macaco (parecida com jaboticaba) ou bacopari (donde, vaca-parida), a gabiroba, o joá, laranja “comum” e de “qualidade”, banana, araticum, aruçá, jaca, caju, guembê ou banana do brejo, ingá, jaboticaba, tuncunu, gerivá.

c) 13 ou 14 horas: café, como de manhã.

d) 17 ou 18 horas: jantar, “janta”, como no almoço.

e) 19 horas: lava os “pés”, toma café “simpli” (sem mistura) e dorme.

Cozinha: Panelas de barro ou de ferro, frigideira, caldeirão, colher de pau, caxerenguengue (velha e afiada faca de mesa), pilão, pilãozinho de alho. O fogão baixo, no chão, de téipa (taipa) ou de três torrões de cupim-tucuruva, dispostos de maneira a formar triângulo.

É peça importante o “fumeiro” um pau suspenso do teto sobre o fogão, onde se põe coisas para defumar.

Come-se no prato (louça ou ágate, ou folha de flandres) ou na cuia (há a de árvore — o cuiêtê, e a de cabaça ou porunga). Lembre-se a expressão de júbilo: Aleluia, aleluia! peixe no prato e farinha na cuia!

[colored_box color=” yellow”] Gentil Eugênio de Camargo Leite (1900-1983)

Mestre de latim, Português, história da civilização, francês e sociologia. Lecionou em Taubaté e Catanduva, a várias gerações, cuja inteligência e personalidade aprimorou. No magistério prestou serviços como diretor e inspetor de ensino. Laureado jornalista, folclorista e pesquisador das nossas histórias e tradições, usos e costumes, foi um dos fundadores da “Sociedade de História e Folclore de Taubaté”, também ingressando em diversas instituições folclóricas do Brasil. Firmou também parceria com o músico taubateano Fêgo Camargo compondo várias obras ainda hoje conhecidas. Seu nome é citado em importantes dicionários de autores nacionais. Admirado por Monteiro Lobato, em discurso proferido no Rotary Club de Taubaté, em 15/09/52, sobre o cinqüentenário dos Sertões, apresentou a idéia de instituir a “Semana Monteiro Lobato”. A obra de Gentil de Camargo, esparsa em jornais e revistas foi reunida pela primeira vez no livro “Poesia e Prosa”.

(Fonte: Taubaté: de Núcleo irradiador de bandeirismo a centro industrial e universitário do Vale do Paraíba, de Maria Morgado de Abreu) [/colored_box]

 

Veja também:

– Parte 2

Parte 3

 

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