Fernando de Mattos e o início do abastecimento de água em Taubaté

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Por Paulo Ernesto Marques Silva

Por volta de 1860 Taubaté experimentava extremo desenvolvimento econômico.
O município, cercado por fazendas monumentais, produzia café aos milhares de arrobas. A cidade crescia cada vez mais com a migração de comerciantes atraídos pela quantidade de dinheiro circulante. Mesmo estrangeiros aqui chegavam ávidos por uma possibilidade, senão de fortuna, de uma vida promissora. Construíam-se residências, hotéis, igrejas, mercados. Construiu-se até uma Estrada de Ferro ligando o Rio de Janeiro a São Paulo e facilitando ainda mais o crescimento da cidade. Iniciou-se a construção de outra Ferrovia com destino a Ubatuba que não logrou êxito. Chegavam as primeiras industrias. A iluminação a gás. Linhas de Bonde para transporte urbano (Taubaté-Tremembé). Dentro deste quadro algo era crucial: A falta de água potável. A falta de água encanada. As fontes existentes minguavam ou tornavam-se poluídas. Foi neste cenário que o Engenheiro Fernando de Mattos, a partir de 1884, dispôs-se a uma grande empreitada: dotar a cidade de um sistema de abastecimento de água potável. O desafio era enorme pois a experiência destas obras no Brasil de então era muito pouca. Mesmo a cidade de São Paulo só contava com um sistema construído a partir de 1878 por engenheiros ingleses. A saga de Fernando de Mattos até os dias de hoje relato neste ensaio a ser publicado em duas partes. A primeira abrange a época dos chafarizes, o sistema da Serra do Poço Grande e os primeiros e problemáticos anos até 1916 quando o serviço de abastecimento é comprado pela Câmara Municipal. A segunda parte cobre os acontecimentos desde aquela data até os dias atuais.

1853-1919 – Chafarizes e Bicas

Pelas leituras das Atas da Câmara de Taubaté desde o final do setecentismo, verificamos que as primeiras menções aos problemas de abastecimento de água iniciam-se por volta de 1850. A cidade até aquela época era abastecida por cacimbas particulares ou públicas. Em 14 de Janeiro de 1853 “Papéis Expedidos pela Câmara” a solicitação de auxilio financeiro para a execução das obras de um chafariz .

Taubaté em 1856 (Capela do Pilar). Acervo DMPAH
Taubaté em 1856 (Capela do Pilar). Acervo DMPAH

Portanto não havia um só chafariz em Taubaté até 1853. Havia apenas uma bica que situava-se em algum local próximo de onde hoje está localizado o cruzamento das ruas Mariano Moreira e Silva Barros, continuação da Rua Jacques Félix (que na época foi batizada como Rua da Bica). Havia também a bica e depois Chafariz do Pastinho (hoje Monção).
É importante notar a diferença entre Bica e Chafariz. Bica seria o local da nascente, vertente ou mesmo um “olho de água” que, de alguma forma é protegido.
Chafariz é um local pré-determinado, geralmente uma praça, para o qual é direcionada a água através de canais ou tubulações, com a finalidade de abastecer a população.
Alguns chafarizes eram ornamentais, situando-se em jardins públicos ou nas residências nobres. Os chafarizes públicos situavam-se em muitos casos em lugares distantes da fonte de água, quase sempre uma bica ou um riacho. Possuíam torneiras e até reservatórios cumulativos, que recebendo a água pelas tubulações, poderiam dali abastecer outros chafarizes.

É de notar-se um grande número de reivindicações a respeito da necessidade da conservação do bom estado da água em nossos rios. Naquela época (1850-55) no local onde hoje é o mercado Municipal existia um tanque de razoáveis dimensões formado pelo represamento natural das águas do Rio do Convento Velho. Este tanque tornou-se poluído devido ao mau uso de suas margens, servindo para diversas atividades, entre elas, a de lavagem de roupas. Servia até mesmo como local de abate de animais e lançamento de lixo e esgotos. Drenado, deu lugar a um aterro sobre o qual foi construído o barracão do Mercado Municipal.

Bica do Bugre, foto de Paulo Camilher Florençano, acervo DMPAH

Através dos antigos registros, notamos a crescente preocupação com a manutenção da qualidade das águas que serviam principalmente ao consumo humano tanto para beber como para sua higiene. Assim inúmeras petições foram feitas à Assembléia Provincial, para que se liberassem verbas para o encanamento das águas que cercavam a cidade e, através de encanamentos , fossem levadas aos chafarizes que seriam construídos com estas mesmas verbas. Estas ações, iniciadas por volta de 1853, prolongaram-se até o final da década.
Em 1855 é anunciada a Chegada da epidemia do Cólera na Província do Pará. Este fato redobra a preocupação com a conservação da qualidade das nossas águas, cada vez mais escassas.
Finalmente em 1859 a Câmara Municipal celebra contrato com o pedreiro JOSÉ FRANCISCO BERNARDES
com o objetivo da construção de um chafariz que, segundo indicações, situava-se nas imediações do Rosário (Atas 09/10/1861) ou Largo da Parada.

As águas para o abastecimento deste seriam canalizadas desde a região denominada do Cristóvão. (supõe-se tratar-se de nascentes e córregos próximos a hoje Delegacia de Polícia e Av. JK, onde existia a Lagoa do Fogaça). Na verdade, o contrato previa a construção de uma caixa para o depósito das águas, bem como de seu transporte desde a sua origem, feito através de telhões justapostos formando canais e protegidos por uma estrutura de tijolos revestida de cimento e cal . Foram previstas caixas de madeira a determinados espaços para propiciarem a limpeza quando necessária, bem com a construção de arcos de tijolos para vencer os “vallos”. Pequenos aquedutos portanto. A comissão formada para a direção destes serviços, bem como para a execução das competentes plantas, era formada pelos Vereadores JOÃO BAPTISTA DA SILVA GOMES BARATA, presidente, e o Vereador JOSE FRANCISCO MONTEIRO. Esta obra foi concluída no começo de 1861. Este foi portanto o nosso primeiro chafariz. A partir desta data e pelos quinze anos seguintes encontramos várias referências a construção de chafarizes por diversos locais da cidade: do Largo do Cemitério, Largo do Pereira (Atas 09/01/1862),Largo do Gado (Atas 09/07/1862), Largo de Santa Clara (O Paulista 27/11/1862), Chafariz Municipal (Papéis Exp. 12/12/1862), construído por José Francisco Monteiro – Barão e Visconde de Tremembé – (Atas 10/12/1862 e 10/01/1863).

Além dos chafarizes foram também construídas diversas Colunas com torneiras em outros largos e praças da cidade. Os senhores Antonio de Abreu Guimarães e Major Ignácio Marianno da Costa Vieira ( O Paulista 27/11/186 e Atas 06/10/1873) são por diversas vezes citados por serviços prestados neste assunto.

A origem da Bica do Bugre tem sido objeto de muita discussão pelos interessados . Porém reportando-nos aos documentos oficiais, verificamos que o Chafariz dos Bugres, como ficou conhecido, teve sua origem com um surgimento de um “olho de água” no local ocupado pelo tanque, naquela região, e que fora drenado. Para este local foi mudado a Feira Municipal, depois Mercado Municipal, que anteriormente funcionara no Largo da Matriz .
6ª Sessão Ordinária a 22 de Outubro de 1853.

Bica do Bugre em 2012. Angelo Rubim/Almanaque Urupês
Bica do Bugre em 2012. Angelo Rubim/Almanaque Urupês

As águas que abasteciam os chafarizes não necessariamente provinham de uma mesma fonte e sim de águas reunidas de diversos locais, via encanamento, para permitir uma vazão suficiente que suprisse a demanda dos consumidores. Desta forma as águas direcionadas para o Chafariz dos Bugres tinham origem nos terrenos pertencentes a Francisco Alves Monteiro proprietário da Chácara da Figueira região que situava-se a montante do antigo tanque, agora Mercado, em local que hoje conhecemos por “Bosque da Saúde” em frente ao conhecido Colégio Monteiro Lobato (Estadão) do lado oposto a Rodovia Presidente Dutra. A canalização quando de sua execução atravessou terras pertencentes ao Capitão Geraldo Gomes Nogueira, onde foram descobertas na época dois vasos contendo ossadas humanas identificados como de indígenas que habitavam Taubaté. Essa área ficou conhecida por muito tempo como cemitério indígena ou “cemitério dos bugres”. Este local é a área situada entre a atual rua Juca Esteves e o Largo Rui Barbosa( Largo do Chafariz) . A atenta leitura das Atas da Câmara permite afirmar que a localização original do Chafariz dos Bugres seria numa região acima do atual Mercado muito provavelmente onde é hoje o Largo do Chafariz (Praça Rui Barbosa).

A manutenção dos chafarizes tornou-se muito importante para a população visto que cada vez mais deles necessitavam para suprir sua demanda pela água. O principal Rio que servia o centro da cidade o Córrego do Convento Velho apresentava avançada degradação da qualidade de suas águas impedindo até mesmo sua utilização por lavadeiras. Manter então uma vazão suficiente e evitar desperdícios tornava-se uma necessidade . Em determinada época, 1866, foi estudada a possibilidade de reunir as águas da Figueira àquelas do alto de São Gonçalo com a finalidade de aumentar a vazão do Chafariz dos Bugres que tornava-se muito procurado pelos usuários. Executado os estudos e apresentados à Câmara Municipal , esta o rejeitou totalmente por absoluta falta de recursos e optou por uma solução paliativa sugerida por um engenheiro alemão, Gustavo Dowurffbein, que por tempos trabalhou em Taubaté, que recomendava a construção de uma caixa depósito das águas oriundas do Chafariz dos Bugres com a finalidade de evitar-se desperdício delas e servir também de abastecimento a outro Chafariz que construiu-se no Largo do Mercado.

Desde meados de 1860 encontramos referências as tentativas ou projetos ou mesmo meras elocubrações para que se trouxesse á cidade água potável canalizada e distribuída em quantidade suficiente para a necessidade da população. Os chafarizes tornavam-se apenas paliativos visto a sua limitação no atendimento a vazão, e, tão importante quanto, a dificuldade no transporte da água desde os Chafarizes até as residências. Os senhores enviavam seus serviçais aos chafarizes que travavam verdadeira batalha com os aguadeiros que enchiam suas pipas para vender pelas ruas da cidade. Os primeiros estudos detalhados para um abastecimento organizado de Taubaté foram executados em 1867 e foram apresentados em sessão da Câmara de 11 de junho de 1867. Tratava-se de um estudo considerando duas fontes possíveis: Os Rios Itaim e Piracangaguá.

Apresentava as vantagens e desvantagens de cada um deles bem como os custos aproximados para sua execução. Por motivos diversos mas, principalmente por falta de recursos a Câmara delibera por não fazer estas obras. Recorreu-se então a ajuda do Eng. Gustavo DOWURFFBEIN que foi consultado sobre a possibilidade de canalizar-se as águas da Serra do Poço Grande (esta região situa-se no atual Município de Tremembé ás margens da Rodovia Floriano Pinheiro, Quiririm – Campos do Jordão , tendo acesso na rotatória do Loteamento Maracaibo a esquerda no sentido Campos do Jordão). Esta hipótese foi descartada pelo eng. DOWURFFBEIN pois teria de atravessar o Rio Paraíba e suas imensas e alagadiças várzeas. Estimou os custos de tal empreitada em aproximados Rs.300:000$000(trezentos contos de réis).

Todas estas possibilidades foram novamente abandonadas, umas por motivos técnicos outras por falta de recursos. Continuava o sofrimento.
Podemos imaginar o desconforto que passava a população com um crescimento acelerado e podendo contar cada vez menos com água potável em quantidade suficiente para suas necessidades. Os chafarizes apresentavam problemas , as fontes secavam , o desperdício era alto. As filas enormes. Concomitantemente as águas dos rios e ribeirões cada vez mais insalubres. A varíola ou bexiga espalhava-se pela cidade fazendo mesmo que vários moradores se refugiassem com sua famílias fora da cidade. As condições de higiene precárias.

A falta de recursos por outro lado impedia grandes obras. Em 1874 o Eng. Francisco Siqueira de Queirós apresenta uma proposta visando dotar a cidade de água potável através de vários chafarizes fazendo diversos encanamentos para tanto e trazendo água de regiões afastadas. Este engenheiro chegou mesmo a assinar um contrato com a Câmara Municipal que acabou por ficar sem efeito pela falta de um fiador conhecido. Em 1976 os engenheiros Lino D’Assumpção e Martiniano da Fonseca Reis Brandão apresentam um minucioso estudo para o abastecimento da cidade. Após uma descrição geral do Município incluindo geografia, topografia, clima e recursos hídricos , tudo em detalhes , escolhem dois mananciais possíveis. As águas da Figueira e o rio do Belém. Pelos resultados apresentados, maior vazão, qualidade das águas e altura de cota superior, escolhem o Rio do Belém. Todos os custos são considerados e esmiuçados e até mesmo elaborada listas de materiais inclusive os importados. A obra total soma Rs. 91:000$000 (noventa e um contos de réis). Submetido a aprovação da Câmara Municipal os planos são elogiados e aprovados unanimemente. Foi pago seus autores a quantia de Rs1:000$000 ( um conto de réis) pela sua execução porém novamente abortados por falta de recursos.

Fernando de Mattos

Fernando de Mattos em 1903, acervo ACIT

Finalmente em 07 de Janeiro de 1884 os engenheiros Carlos Zanotta e Fernando de Mattos apresentam requerimento á Câmara Municipal solicitando a permissão da Assembléia Provincial o privilégio por quarenta anos para abastecer a cidade com água potável .

Bibliografia: Atas da Câmara de Taubaté – Felix Guisard Filho;
Jornais da Época;
Depoimentos: Oswaldo Carneiro, Brant de Mattos;
Colaboração Especial: Profa. Lia Carolina Prado Alves Mariotto.
Paulo Ernesto Marques Silva : Engenheiro Civil e pós-graduado em Engenharia de Recursos Hídricos e Gerenciamento de Serviços Públicos .

Veja também:

– História da água – Fernando de Mattos e o início do abastecimento de água em Taubaté, Parte 2/2

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